Nevinha Pinheiro, de Serra Redonda, foi uma jornalista, escritora e crítica literária; ainda pouco estudada, prestou grandes contribuições para a literatura brasileira.
Até onde se sabe, Carlos Drummond de Andrade nunca esteve na Paraíba. O único registro documentado da relação do poeta com o estado se dá através da curiosa e intensa troca de correspondências e telefonemas (confira abaixo) com a jornalista, escritora e crítica literária paraibana Nevinha Pinheiro, da cidade de Serra Redonda. O diálogo entre os dois é revelado no livro "Poética da Incorrespondência: no Reino das Palavras", organizado por Antônio de Brito. A obra ainda não foi oficialmente lançada, mas o g1 teve acesso ao material. Nesta quarta-feira (17) a morte de Carlos Drummond de Andrade completa 35 anos.Para Drummond, Nevinha escreveu o que considerava alguns dos melhores comentários sobre suas obras, além de ter sido um entusiasta da criação literária da paraibana, incentivando a publicação de seus livros enquanto ainda estavam no prelo. Pelos registros, é possível perceber admiração e carinho envolvendo as duas figuras que, apesar de íntimas, nunca se encontraram pessoalmente.
É provável que tudo tenha começado quando uma resenha crítica de Nevinha, acerca da poesia de Drummond, chegou até ele. “Foi aí que ele descobriu que Nevinha conhecia muito bem a sua poesia. Desde então, o poeta percebeu seu talento para fazer críticas ao que escrevia. Acredito que foi depois dessa percepção que ele se tornou seu amigo de correspondências”, diz Dione Pinheiro, irmã de Nevinha.
A troca de telefonemas acontecia até no local de trabalho de Nevinha, que foi, durante muitos anos, a redação do Jornal do Brasil. Quando o telefone dela tocava, os colegas questionavam: “quem será? Drummond ou Tristão de Ataíde?”.
Nevinha comentava com sua irmã: “é estranho, fico me questionando, eu, uma pessoa simples, de uma cidade do interior do Nordeste chegar a ser crítica literária e chegar a ser amiga de Érico Veríssimo e Carlos Drummond de Andrade e estes terem uma grande intimidade comigo”, relembra a irmã.A forma de comunicação entre os dois que predominou foi a manuscrita. As cartas de Drummond foram entregues pela família de Nevinha à Editora UEPB, que além de resgatar os registros, transcreveu para facilitar o entendimento dos leitores.
Apesar de duas décadas de comunicação, Nevinha e Drummond nunca se encontraram pessoalmente. Segundo a irmã de Nevinha, a jornalista questionava: “o que mais me estranha é que Drummond não queira que eu o conheça pessoalmente. Eu digo a ele ‘eu vou discretamente a Ipanema onde o senhor sempre fica sentado’, ele diz: ‘Não Nevinha, não venha, não compensa você me conhecer’”.Para Antônio de Brito, o encontro só não aconteceu por falta de oportunidade. “Não há uma recusa explícita por parte do poeta. Ele sempre brincava dizendo, quando ela sugeria conhecê-lo pessoalmente: “para que conhecer um velho birrento”. Não ir a lugares públicos era dele mesmo, mas sempre intimou Nevinha que “caso ela o visse em qualquer lugar não deixasse de abordá-lo sob pena dele não perdoá-la”, diz.Nascida em 1931, Nevinha Pinheiro é natural de Serra Redonda, Agreste paraibano. Segundo o historiador Dário Machado, sua família por parte paterna veio de Barbalha no Ceará e sua mãe é de Alagoa Grande. Já na infância, “despertava os seus ensejos para a escrita, produzindo contos ainda criança. Na escola, especificamente na hora do recreio, gostava de reunir as amigas para lhes contar histórias”, afirma o historiador.No prefácio da obra de Antônio de Brito, a irmã de Nevinha, Dione Pinheiro, lembra da infância e destaca que, desde muito criança, “ela demonstrava ser bastante inteligente e desembaraçada. Cresceu com o hábito de ler tudo que via à sua frente”, afirma.
“Ainda adolescente descobriu que era preciso alçar voo, uma vez que em Serra Redonda, pequena cidade do interior paraibano, não dava para alcançar sua realização pessoal que era conhecer o mundo de outros grandes centros, já que, segundo ela mesma dizia, 'sentia algo estranho à sua mente' que a impulsionava a fazer perguntas sobre os problemas da vida e sobre sua realidade que estava além de sua pacata cidade”, escreveu Dione no prefácio da obra.
Na adolescência, foi estudar em Campina Grande, no Colégio Estadual da Prata. Depois foi para João Pessoa, onde concluiu o ensino médio no Liceu Paraibano. “Assim, Nevinha prestou o vestibular na UERJ e foi aprovada com ótima média para cursar Jornalismo. A partir daí, fez amizades e criou um círculo de amigos ligados às letras e ao jornalismo”, relembra a irmã.
Foi dessa forma que Nevinha passou a se relacionar com pessoas do universo cultural e jornalístico brasileiro. “Evidentemente que sua aproximação com o poeta de Itabira se dera pelo fato de Nevinha já ter ligações tanto com Érico Veríssimo quanto com Josué Montello. Autores de renomes nacional. A partir daí, certamente, Nevinha descobriu que tinha o “dom” e a competência de atuar como crítica literária”, diz Dione.Para Antônio de Brito, Nevinha Pinheiro “foi peça fundamental na Literatura brasileira por escrever críticas, resenhas, contos e romances e produzir reportagens e fazer inúmeras análises da obra de Drummond e outros autores de grandes vultos da nossa Literatura, a exemplo de Érico Veríssimo que será fonte do segundo livro tratando desta escritora paraibana”.
Em 1978, Nevinha publicou o que é considerada sua principal obra 'A Crucificação do Diabo", pela Editora Moderna. “É um livro que merece todo nosso respeito porque é um marco na produção literária de Nevinha Pinheiro, sendo um romance que retoma determinados dogmas religiosos e coloca Jesus e o Diabo como crianças aprendendo a sobreviver em terras do polígono da seca”, afirma Brito.Nevinha Pinheiro pode ser considerada "uma autora que resistiu e resiste a essa resistência que a crítica machista tem em relação às produções de mulheres escritoras brasileiras”, diz Antônio De Brito de Freire, organizador do livro. “Como jornalista, ela escreveu excelentes artigos e fez entrevistas fundamentais para o jornalismo cultural brasileiro, a exemplo das entrevistas com Drummond, José J. Veiga, Clarice Lispector entre tantos outros”.
Segundo Brito, o objetivo de sua obra é “ressaltar o nome de Nevinha Pinheiro para que ela não seja mais uma escritora brasileira, a produzir com qualidade e ter sua produção e sua participação rasuradas, apagadas pelas mãos dos homens que escrevem sobre quem escreve”.
“Sua obra deveria aparecer ao lado das produções que integraram a criação literária de seu tempo”
Confira algumas cartas
A correspondência entre Nevinha e Drummond foi trocada entre as décadas de 1970 e 1980. No livro, as cartas são seguidas de comentários contextualizadores e interpretativos do organizador.
Transcrição: “Rio, 21 de abril de 1975. Nevinha Pinheiro: Grato por sua carta gentil e imaginosa, ditada por uma simpatia intelectual que me desvanece. Sobre as razões que atribui ao meu gesto haveria muito que conversar. Na realidade, agi tendo em vista a liberdade de expressão e de criação intelectual.Apenas. O abraço cordial de Carlos Drummond de Andrade Ps. O encontro pessoal fica para próxima oportunidade, que marcarei com prazer. CDA”.
Transcrição: "Cara Nevinha: Adorei as cartas e acho que o seu livro será muito gostoso de ler. Apresentação, entretanto, não tenho jeito de alinhavar. Eu assumiria um ar de autoridade no gênero, que não sou. Além disso, minha opinião é que a obra literária se sustenta por si mesma, sem andaimes alheios, você tem talento, e basta. Uma bonita edição, bem distribuída, é o bastante para o livro pegar, não há melhor crítico do que o leitor. Ele pega da obra, lê, julga, e se gostar, vai espalhando pelos quatro ventos o seu entusiasmo. O abraço carinhoso e os melhores votos do Carlos Drummond de Andrade”.
Transcrição: “Rio, 8 de julho, 1986. Querida Nevinha: Que friiiio...! Mas ele é compensado pelo calor de amizades como a sua que reconquista o velhinho franzido. Não tenho respondido suas cartas porque sou irremediavelmente, um mal correspondente mas bem que gosto de recebê-las. Para abreviar as comunicações, dê-me o seu telefone que eu [ilegível]. Não se surpreenda com o mutismo de “nossa” verde-rosa a propósito do serviço inestimável que você me mostra. Faz parte da vida, e já me acostumei a isso em diferentes ocasiões. O espantoso seria, ao contrário, que eles reconhecessem o benefício… Abraço afetuoso do Carlos”.
Alguns telefonemas
Além das cartas, os escritores conversaram diversas vezes por telefonemas. Nevinha, por sua vez, talvez por vocação jornalística, transcrevia o que o poeta lhe dizia em ligação. O g1 selecionou alguns trechos das transcrições de Nevinha, algumas de longa extensão.
1º papo com o poeta
(Trecho 1): “Dizendo que eu pedia pra fazer-lhe a entrevista por carta, que estava doente resfriadíssimo e mesmo sendo ideal uma entrevista gravada, ele não estava em condições. Eu perguntasse o que quisesse que ele responderia por carta. Eram 8 horas (21) e quando ele disse o seu nome eu fiquei entusiasmada. E ele perguntou: “Você está bem, minha querida? Eu disse: “Eu ia bem, agora estou ótima”! Ele riu...Que maravilha, com aquela fala encabulada dele”.
2º papo
(Trecho 1): “Quando viu o meu retrato no jornal “A voz do morro” disse-me linda, o seu retrato está lindo! E depois pelo fato das novelas todas da escola, injustiças comigo e eu brinquei, disse-me uma santa. Mas que eu devia e tinha direito de procurar os meus direitos autorais. Depois me apresentou o neto por telefone e disse que este queria conhecer o carnavalesco. Telefonou-me dizendo que estava com “saudade” de mim...e quando outra vez, perguntei se ele ia bem, falou-me: “Vou, graças a você”.(Trecho 2): Mandei-lhe um retrato meu (que a fotógrafa do “Vale do Rio Doce” havia batido) grande preto e branco. Ele telefonou-me e disse-me eu encanto, no sentido interno que o meu sorriso era de pura bondade e um retrato do meu coração e de minha alma. Que era o maior presente que eu podia dar-lhe e que sempre tinha vontade de pedir um retrato meu, mas que tivera acanhamento, pois eu podia dizer-lhe: “Velho assanhado!”...mas que adorava recebê-lo. E que já me conhecia, não era desconhecida como mandara dizer-lhe, já me conhecia e muito bem (naturalmente que era conhecimento “interno”).
(Trecho 3): Dissera-me antes, outro dia: “você é minha amiga e pode telefonar- me quando quiser pois os amigos são sempre bem vindos e oportunos”. E rematou ser eu sua amiga!
(Trecho 4): E outro dia disse: “Estou com saudade de você!!!”
Telefonei para o “Poeta”
(Trecho 1): Ele falou que do Carnaval a única lembrança agradável foi a minha atuação, fazendo tudo com carinho e entusiasmo. No mais foi tudo desagradável, sobretudo após o carnaval, as invasões domiciliares e os exageros de cumprimentos pela vitória.
(Trecho 2): Perguntou pelo pelo meu livro, se já havia publicado, isto é se a editora havia aceito. Eu disse que não e que o rapaz Fernando Paixão, havia dito que só aceitava autores famosos. Ele então falou que o único autor brasileiro então a ter chance seria o Pelé.(Trecho 3): Ele admirou-se da editora não valorizar o meu texto e achar que só vale autor conhecido. Perguntei se ele leria o meu restante do original, e ele disse que sim, podia mandar que ele leria sim. E que eu falar que o fato dele ler ser tão importante o quanto publicar ele disse: “Não exageremos!”
15-7-87 Conversei com o poeta
(Trecho 1): E que a opinião dele em relação ao meu livro é a de um velho com 80 anos fora de forma já o que não gera nada! E que existe no todo do meu livro uma pureza que é bela e que ele acha bonita. E que vai falar com o Pedro para me telefonar. Eu disse que agradecia por tudo. E que Deus me pagasse por tudo.
Telefonema do poeta
(Trecho 1) Ele está altamente desencantado com o problema da filha, ele falou não ter mais jeito, há sete anos que ela está doente e agora só é medicada para não sentir dores, apenas isso. Ele está doente, mas não foi por causa dela. Ela já estava antes. Ele está muito desencantado. Disse-me que não acredita absolutamente em nada, Deus é algo inventado pelo homem. A vida é uma tragédia, guerras, lutas horrores. Basta ler, abrir um jornal e ver os horrores acontecendo todas as horas.
(Trecho 2): Não creio em absolutamente em nada que não veja na matéria e um pouco na nossa precária ciência. Você me deseja tudo de bom? Não acha que é um...demais? Que é exagero? Quem tem tudo de bom?
(Trecho 3): Dentro de certo limite possível, você é alguém que me dá alegria. Mas eu não tenho razões muito grandes para elas.
Sobre o livro
As correspondências foram preservadas pelas irmãs de Nevinha, Dione e Maria do Carmo Pinheiro. “As irmãs Pinheiro resguardaram com amor e cuidado todo acervo da escritora para doarem à Universidade Estadual da Paraíba, o que resultou no presente livro”, explica o organizador. Ainda não há data oficial de lançamento, mas deve acontecer no próximo mês de setembro em Campina Grande e ainda neste mês em Serra Redonda, terra natal de Nevinha.
A obra é fruto de mais de 3 anos de produção e um dos seus objetivos é buscar as vozes esquecidas ou silenciadas pelo cânone masculino. “Era necessário lançar Nevinha Pinheiro no âmbito universitário para que chegássemos até aqui e seguíssemos para estudá-la na literatura paraibana por sua qualidade já reconhecida por grandes nomes da cultura nacional, a exemplo do poeta Drummond, do folclorista Câmara Cascudo, de Ariano Suassuna, de Érico Veríssimo, de Josué Montello entre outros”, diz Brito, organizador da obra.
"Temos o compromisso de olharmos as injustiças cometidas contra as autoras que encenaram e encenam no cenário literário com excelentes produções, produções de alto nível, mas que foram ou não “queimadas”, ocultadas ou submetidas aos porões do esquecimento e silenciadas como “bruxas” de “péssimas” escritas pelos homens que compõem a 'República Mundial das Letras'", diz Antônio de Brito.
Fonte:https://g1.globo.com