'Precisava falar', relatam mulheres que superaram ciclos de violências na Paraíba
O que acontece..
Publicado em 08/03/2018

Abuso sexual infantil, preconceito no mercado de trabalho, assédio, relacionamento abusivo e violência doméstica fazem parte das histórias contadas neste 8 de março.

Michelle (nome fictício) levou pelo menos quinze anos e a melhor fase da sua vida - a infância - para entender que a culpa não era sua. Por volta dos oito anos, foi abusada por um tio quatro vezes mais velho que ela. Hoje com 28 anos, Michelle consegue enxergar uma mulher mais forte quando mira o espelho, mas como 1,5 mil mulheres da Paraíba que já sofreram algum tipo de violência, segundo o Mapa da Violência de 2015, Michelle ainda sente os reflexos do machismo. Por sorte, ela e as outras quatro personagens dessa reportagem não foram vítimas dos 25 feminicídios que ocorreram em 2016, mas fazem parte do caminho que chega até ele.

Michelle não sabe bem como classificar o que aconteceu com ela, diz que “abuso é abuso” e, portanto, não requer uma classificação. No entanto, para o Código Penal Brasileiro, a violência sofrida por Michelle aos oito anos pode ser considerada um estupro. O artigo 213 é claro em definir. Estupro significa “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.

Foi em uma chácara, onde se divertia com os primos, que tudo aconteceu. Os pais de Michelle viajaram e ela foi para o local com os familiares. Na primeira noite, por conta de uma infecção no ouvido, precisou ficar mais próxima de um dos tios. “Quando ele foi colocar o remédio no meu ouvido, lambeu os meus lábios”, conta. Na tentativa de esboçar alguma reação ou falar algo, Michelle foi silenciada. “Ele tapou a minha boca”. Ainda acanhada para contar o que aconteceu, foi dormir.

 

No dia seguinte, ela estava na parte de baixo do casarão, enquanto os primos estavam na parte de cima. O tio chegou e se ajoelhou na frente de Michelle. “Ele começou a acariciar o meu colo com a boca, até chegar no baixo ventre. Eu tenho certeza que ele só não baixou o meu biquíni porque o meu primo nesse momento desceu as escadas”, relata.

“Isso acabou influenciando meus relacionamentos, acabou influenciando a minha postura como mulher. Isso traz marcas em mim até hoje”, diz Michelle.

 

Depois do fato, Michelle nutriu apenas um sentimento: a culpa. Vivia um conflito que colocava o seu corpo como ameaça contra a sua própria vida. “Eu não posso mostrar o meu corpo porque isso vai despertar tal sentimento nas pessoas, como se a culpa fosse do meu corpo, que nasceu dessa forma”, acreditava. Michelle pensa que poderia ter sido menos “arredia”, menos “carinhosa”, mais “desconfiada”, mais “esperta”. Ainda se fosse, nada mudaria. “Eu sinto como se eu tivesse tido alguns aspectos da minha infância roubada”, declara.

 

'É como se nada nunca tivesse acontecido'

 

Na época que tudo ocorreu, Michelle contou apenas a uma prima. No entanto, ela revela que a consciência de ter sido vítima de um abuso sexual chegou apenas na adolescência. Contou para a irmã e, durante uma briga, acabou revelando também à mãe. O pai, irmão do tio, soube inicialmente pela esposa. “O que mais me doeu é que meu pai nunca foi tomar nenhuma satisfação, nunca disse nada. É como se nada nunca tivesse acontecido”, confessa.

Quando resolveu ela mesma abrir o jogo com o pai, já tinha seus 18 anos. Perguntou por que ele nunca a defendeu. Ele a olhou e disse: “o que é que eu vou fazer, minha filha? Matar o meu irmão?”. A mágoa, Michelle guarda até hoje, mais ou menos dez anos depois. “Não interessa quando que eu abri a boca pra falar”, questiona.

 

'Uma mulher mais forte'

 

Não foi fácil para Michelle romper o ciclo que fez parte de todas as fases da sua vida. Tentando suprir a necessidade de proteção que não teve na infância, se apegava a tudo e a todos. Entrega e confiança em excesso. Mas hoje, depois de um ano de terapia, consegue enfrentar o passado. “Hoje eu consigo me ver como uma mulher mais forte”, revela aliviada.Mas não foi sozinha que Michelle lutou contra a culpa do próprio corpo, inscrito em um mundo onde curvas bem feitas podem ser perigosas. Embora só tenha conseguido conversar com as amigas pouco tempo atrás, foram elas que deram sustentação a um empoderamento que ainda faltava em Michelle.

Com a voz ainda embargada, colocando para fora um choro que não lhe foi permitido na infância, Michelle se fortalece. “Hoje eu consigo enfrentar melhor. E eu coloquei na minha cabeça que eu preciso falar sobre isso para ajudar outras pessoas, porque mais de vinte anos depois ainda me dói, ainda não consegui deixar isso completamente para trás e talvez eu nunca consiga. Mas eu precisava falar”, lamenta.

 

“É muito difícil, porque quando você sofre um abuso e você entende que isso é um abuso, é como se inconscientemente eu tivesse processado ‘eu não valho nada’", desabafa.

 

Segundo a psicóloga Ana Sandra Fernandes, todas as violências deixam marcas na vida de cada pessoa que a sofre. Mas cada mulher, em sua particularidade, reage de uma forma diferente. Michelle escolheu enfrentar, embora já tenha ultrapassado obstáculos difíceis com os problemas em relacionamentos pessoais. “A gente sabe que os transtornos de estresse pós traumático são possibilidades quando a gente é submetido a alguma situação traumatizante, sobretudo uma situação de violência”, explica.

Machismo no mercado de trabalho

 

Os números, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são positivos. Mostram que nos últimos 50 anos, as mulheres deixaram de atuar apenas no lar e passaram a se lançar no mercado de trabalho. Para se ter uma noção, as mulheres representavam 40,8% do mercado formal de trabalho em 2007. Em 2016, elas já passaram a ocupar 44% das vagas.

No entanto, os números nem sempre refletem a realidade de todas as mulheres. Izabella (nome fictício) tem 24 anos e se formou em publicidade em busca de um sonho. Escolheu caminhos que se identificava enquanto profissional, mas não foi aceita enquanto mulher.

Ainda estudante, participou de uma entrevista para uma vaga no ramo da indústria farmacêutica. A função era propagandista de medicamentos. Não ficou com a vaga. Motivo: bonita demais. “Fiquei chateada porque eu não estava em um concurso de beleza. Pelo jeito que ele falou, parecia ser pré-requisito para a vaga”, conta. Contraditório, analisa Izabella. Mas entendeu, com o resultado final da seleção, que buscavam mesmo um homem.

Já formada e com diploma na mão, participou de um outro processo na mesma área e foi dispensada. “O setor de trabalho era grande, rodava muitos quilômetros, mas o laboratório disponibilizava carro”, explica. Na entrevista, o empregador insistiu em saber se Izabella sabia mesmo dirigir, mesmo ela já tendo afirmado que sim, tinha carteira de motorista e não haveria problemas quanto a isso.

Em seguida, foi questionado o fato de Izabella ser muito nova. “Ele disse que daqui a pouco eu iria ganhar estabilidade e ia querer ser mãe, colocando a situação como um problema”, destaca. “Várias vezes eu tentei entrar nesse ramo e até agora não consegui, porque os gerentes sempre optam por homens”, completa.

“É ridículo o fato das pessoas se conformarem com isso”, questiona.

Izabella não é muito otimista. Embora tenha pouco tempo de formada, já sentiu na pele o peso do machismo. Pensa em ser mãe e não se intimida com as represálias dos patrões, mas chega a preferir que seja do sexo masculino para não precisar passar por situações que ela mesmo já passou. “Mulher sofre demais”, diz. “Esse problema é cultural, tem que ser mudado, principalmente, na forma de educar os filhos e filhas”, sugere.

Quem concorda com ela é a psicóloga Ana Sandra, que reafirma a necessidade de educar para o futuro. “É importante que nós, mulheres e homens, possamos inclusive trabalhar as nossas crianças desde cedo para que no futuro elas também compreendam que não dá para tratar de forma discriminatória, violenta, nenhuma pessoa. Toda pessoa merece ser respeitada”, reflete.

Tudo começa com assédio

 

Estava apenas no início da juventude e aproveitava como qualquer menina na sua idade. Vivianny (nome fictício) era dona de si e não imaginava que outras pessoas também nutriam esse sentimento de posse. Saiu com alguns colegas e beberam um pouco. O pouco, no entanto, foi muito para Vivianny. Do momento em que estava se divertindo, só lembra quando acordou sem roupa, dentro de um carro, sem qualquer possibilidade de reação.

“Tinha a sensação que eu ia apagar. Eu só queria sair e dizer que eu não queria ir além”, conta Vivianny.

 

Depois de insistir algumas vezes, com as forças que ainda tinha, conseguiu chamar uma amiga. O garoto a deixou sair, mas vestida de culpa e vergonha. “Na época, não encarei como assédio, nem tive coragem de comentar com outras pessoas, porque na minha cabeça a culpa era minha. Fiquei me sentindo culpada por muito tempo”, diz.

Foi o tempo o grande resolvedor de tudo. Vivianny passou alguns dias sem falar nada. As cenas se repetiam como um filme de terror, que demora várias noites de sono para ir embora. Mas com o tempo, foi percebendo que a direção desse roteiro não era sua e que a culpa pelo trauma também não lhe cabia. “Com muito tempo”, frizou.

Para Vivianny, bastava não ter bebido muito. Bastava ter conseguido chamar a amiga antes. Bastava ter dito não ao rapaz. Mas não bastava. De acordo com os dados do Anuário Brasileiro da Segurança Pública, uma mulher é vítima de estupro a cada dia na Paraíba. No Brasil, a cada hora, cinco mulheres têm seus corpos violados.

Vivianny só se deu conta que a culpa não lhe cabia mais, quando percebeu que ninguém tinha direito sobre o seu corpo, independente da bebida que ingeriu. “Depois disso, fiquei um tempo insegura, sem sair ou beber”, conta. Hoje, com 22 anos, ainda tem vergonha por ter acontecido.

Relacionamento abusivo também é violência

 

Todo o relacionamento durou oito meses, mas para Bríggida (nome fictício) foi uma eternidade. Rendeu-lhe demissão, tristeza e desencanto consigo mesma. Com 27 anos, ela voltou a viver um pouco mais, encontrou sua essência e escolheu que a sua armadura seria o sorriso. Vestiu-se de paz, mas para isso, precisou cair. Bríggida é a pessoa com mais propriedade para falar sobre o assunto. Deixo na boca dela tudo que ela precisou dizer por muito tempo e ninguém perguntou.

Situação 1

A primeira briga que tivemos foi em um show. No meio da apresentação, enquanto eu conversava com uma amiga comum de nós dois, ele cismou que eu estava dando em cima do cantor. Me fez parar de cantar as músicas na hora, disse que não adiantava justificar pois ele tinha visto com os próprios olhos que eu estava dando em cima do cantor e me mandou calar a boca. Eu era uma das três mil pessoas no show. Fiquei calada relembrando todos os meus movimentos para tentar entender onde eu tinha errado.

Situação 2

Ele vistoriava todos os trabalhos que eu fazia. Dizia que ele seria a pessoa mais sincera que eu poderia ter para avaliar os meus trabalhos. Todas as vezes que eu mostrava meu trabalho, ele dizia que era medíocre e perguntava se eu ia ter coragem de mostrar os meus resultados para os clientes que tinham me contratado.

Eu mostrava para os clientes e para meus amigos, todos eram só elogios. Ele rebatia dizendo que os meus amigos só diziam isso para não me magoar, mas que todo mundo sabia que era um trabalho medíocre e que ele nunca ia mentir pra mim para me deixar confortável.

Eu chegava do trabalho e ele sentava comigo na cama. Ia comparar o meu trabalho com o do meu colega que trabalhava na mesma função. Ele acertava todas as peças que eu tinha feito e dizia que reconhecia porque as minhas peças eram medíocres e as do meu colega eram muito acima do meu nível. Eu perdi a confiança no meu trabalho, deixei de aceitar as demandas que chegavam e fui demitida por não conseguir produzir.Situação 3

No dia dos namorados nós estávamos brigados. Fiz de tudo para fazer as pazes e levei um jantar japonês para comemorar o dia. Ele fez cara feia para o jantar e não falou mais de duas palavras comigo. Fomos assistir o filme que estava passando na TV, era Uma Linda Mulher, com Julia Roberts. Ele dormiu e acordou comigo chorando em prantos. A prostituta do filme era mais respeitada pelo cliente do que eu era respeitada pelo meu namorado. Era o meu namorado que me chamava de prostituta e dizia que não transaria comigo porque tinha nojo de mim.

Situação 4

Eu era proibida de ficar online no WhatsApp quando ele não estava. Caso acontecesse, eu era abordada com frases "o que você está fazendo online? deveria estar trabalhando" ou "está conversando com quem, posso saber?". Um dia eu estava conversando com minha mãe e ele estava falando no privado. Demorei exatos dois minutos para responder e tivemos uma briga pesada porque ele não admitia que eu demorasse dois minutos para dar resposta e reivindicava prioridade. Por causa disso eu me afastei dos grupos dos meus amigos, comecei a usar cada vez menos as redes sociais e fui desaparecendo aos poucos até perder o contato com todo mundo.

Situação 5

Estávamos na área comum do prédio de um casal de amigos, estava tudo bem até aparecer um grupo de meninos. Eu estava sentada de frente para a freezer em que estava as nossas cervejas e as do grupo que tinha acabado de chegar. Quando os meninos passavam para pegar as cervejas, ele me perguntava se eu conhecia, pois estava olhando a movimentação. Eu respondi que não e ele não acreditou. Com pouco tempo, ele estava me xingando pelo celular, que devia já ter transado com um desses meninos (que eu nunca tinha visto na vida). Ele só sossegou quando eu mudei de lugar e fiquei de cabeça baixa olhando para mesa.Fim de um ciclo

A última briga foi no apartamento dele. Eu levantei mais cedo para fazer o café da manhã. Fiz suco de laranja e várias outras coisas. Notei que ele estava demorando a sair do quarto. Quando entrei, ele estava vistoriando o meu celular. Entrou nas minhas redes sociais e viu que um rapaz tinha me adicionado. Perguntou por que eu tinha aceitado e eu respondi que era um menino bem mais novo e que era filho da melhor amiga da minha mãe, por isso que eu tinha aceitado.

Isso foi o suficiente para ele jogar meu celular na parede enquanto me xingava pesado. Ele quebrou tudo o que eu tinha colocado na mesa do café da manhã, me mandou entrar no quarto, pois ele não queria que os vizinhos escutassem o que ele tinha para me dizer. Me colocou sentada na cama, porque me queria abaixo dele, trancou o quarto e continuou a me xingar.

Tudo que passava na minha cabeça era para manter o silêncio, pois ele poderia me bater a qualquer momento. Ele foi terminando o discurso e chorando dizendo que tudo que ele estava dizendo e fazendo era para proteger nosso relacionamento e que ninguém mais me respeitaria como ele. Destrancou a porta do quarto, eu me levantei ainda em silêncio e nunca mais voltei ali.

 

“Eu sou a pessoa mais feliz do mundo hoje”

 

É naturalizando casos como o de Bríggida que mulheres passam de fase: vão de um relacionamento abusivo para uma violência doméstica. Terminam na estatística das 25 mulheres mortas em 2016 pelo simples fato de serem mulheres. "A gente tem uma sociedade que, além de naturalizar todos os tipos de violência, também fixa como conceito de violência somente a física. A morte das mulheres não é uma preocupação para essa sociedade estruturada pelo patriarcado", explica a professora Tatyane Oliveira, coordenadora do grupo Marias de extensão e pesquisa em gênero, do Centro de Referência de Direitos Humanos da UFPB.Para a pesquisadora, o relacionamento abusivo tem muitas nuances, mas se apresenta naturalmente como o controle do corpo da mulher, o controle do direito de ir e vir, e todas essas questões disfarçadas por ideias relacionadas ao amor romântico. "O relacionamento abusivo é muito carcaterizado pelo uso de algumas estratégias que não aparentam ser abusivas, socialmente difundida como amor, e que acabam controlando a mulher. De acordo com uma pesquisa do Cunhã, o termo que a mulher mais usa em um momento de relacionamento abusivo é posse", declara.

 

"Enxergar a mulher como propriedade, como meio de reprodução e posse, é um grande guarda-chuva para relacionamentos abusivos", diz Tatyane Oliveira.

 

Bríggida conta que atingiu o seu limite. Havia tentado de várias maneiras levar o relacionamento a um nível agradável. “Enquanto ele me agredia verbalmente, eu pensava que nunca tinha visto isso no casamento dos meus pais e que eu não queria que meus filhos presenciassem uma cena dessas. Aquilo me fazia muito mal, eu não me reconhecia mais”, desabafa.

 

“Ali eu tinha finalmente escolhido ficar do meu lado e me proteger”, disse.

 

Depois dos oito meses vivendo uma realidade que não escolheu, Bríggida precisou se reencontrar. “Eu perdi totalmente a referência de quem eu era”, conta. Os amigos - mais uma vez peças fundamentais nessa reportagem - ajudaram a relembrar quem ela era antes de entrar no relacionamento. “Eu demorei para acreditar neles porque ele me fez desacreditar em todo mundo ao meu redor, me fez acreditar que todos mentiam sobre mim, menos ele”, diz.

Recuperou também o amor pela profissão. Encontrou um trabalho que a empondera enquanto mulher e enquanto profissional. “Quando olho ao redor e vejo que tanta gente talentosa olha para o meu trabalho e também reconhece talento, isso me enche de mim de novo”, conta, dando cores ao que antes não tinha.Transformou a dor em solidariedade. Feliz, mas atenta para qualquer sinal de relacionamento abusivo ao seu redor. Relacionamentos que diminuem, minimizam e inferiorizam o outro enquanto ser humano. Disposta a ajudar, escolheu falar porque ela mesma, mulher, designer, filha, acreditava que a culpa era de quem escolhia permanecer dentro de um relacionamento abusivo. “A mulher é sempre vítima, não tem o que questionar”, destaca.

Quando pergunto se Brígida hoje está feliz, é possível perceber, até nas palavras, que ela sorri com leveza. “Eu sou a pessoa mais feliz do mundo hoje. Me reconhecer de novo e me encantar com quem eu sou está me rendendo ótimo frutos. Eu precisava falar”.

Rompimento de um ciclo

 

A vida de Aryane (nome fictício) pode ser resumida em uma única frase: “felicidade é estar em paz”. Depois de 11 anos dentro de um ciclo de violência doméstica, foi com a liberdade que resolveu se casar de verdade. Faz, aproximadamente, um ano e meio que Aryane quebrou o ciclo, que nem ela mesma acreditava ser capaz de nutrir. Hoje sorri. Sorri, inclusive, sem acreditar que passou por agressões tão marcantes. Sorri porque enxerga uma fortaleza que não sabia que existia.

Como o relato de Bríggida, Aryane também não sabe explicar em que momento resolveu deixar tudo para trás e amar a si mesma. Mas sabe que os momentos de agressão e violência psicológica a transformaram enquanto mulher. Também deixaram marcas, mas, principalmente, deram-lhe o significado de uma palavra que até então não sabia: superação. Grávida com 13 anos, começou cedo a conhecer as dores e vulnerabilidades que passa uma mulher.Entre gritos, xingamentos, desprezo e desafeto, Aryane encontrou-se humilhada. Com olhos lacrimejados, mas ao mesmo tempo um sorriso orgulhoso estampando o rosto, ela lembra das agressões sem sentir dor. “Eu não consigo sentir a sensação de estar sendo agredida quando eu estou falando. É como se fosse outra pessoa. É tão inacreditável saber que passei por aquilo”, disse.

O móvel, a quina de uma mesa, a distração. Tudo foi motivo para justificar as marcas roxas que aparecia pelo corpo e precisavam ser cobertas pela roupa ou óculos escuros. Aryane chegou a dormir com a cama encostada na porta do quarto, com medo da ameaça de morte ser concretizada. Mas todos que os viam juntos, se encantavam com o casal. “É incrível como é uma coisa natural do ciclo, a gente acha que não tem apoio, a mulher tem esperança que seja diferente”, relata.

De acordo com a psicóloga Ana Sandra Fernandes, a naturalização faz parte de uma cultura associada à questão da violência contra a mulher. “O mais importante é que a gente saia dessa condição de naturalização, de aceitar que essas violências podem ser naturais. Tudo o que a gente naturaliza perde a força e a capacidade de mudar. O que é natural é algo que acontece porque vem da natureza. E a situação de violência não pode ser encarada como natural”, destaca.

Com três filhos, Aryane tentou sair do ciclo várias vezes. As agressões e humilhações eram cometidas na frente das crianças, que tentavam, de alguma forma, impedir. Denunciou duas vezes, mas como a Lei Maria da Penha ainda não estava em vigor, a delegacia buscou a reconciliação. “Mas isso não existe. Não existe reintegração nessa situação de violência. Eu sou prova disso”, lamenta.

 

"Tinha medo de morrer, mas eu não sei que medo era esse que eu não tinha essa força de ir embora. Achava que nunca ia acontecer comigo", lembra.Dentro de uma relação marcada pela violência doméstica, a culpa é o primeiro sentimento. “Se eu tivesse agido de outra forma”, pensava. “Mas não tem jeito”, responde a si mesma.

Apenas quando conseguiu se libertar e perceber que estava mais revestida de angústia e preocupação do que de paz, sentiu-se pronta para não olhar mais para trás. “É incrível como eu estou numa fase de reflexão, plena”, declarou.

 

“A gente segue em frente porque tem que ir mesmo”, pontua.

 

Mais feliz, mais mulher, mais independente, mais confiante. Apenas um ano e meio depois. Ainda pouco, ainda um tempo imaturo, mas o necessário para estampar um sorriso no rosto. “É incrível, é uma coisa de ego, que satisfaz, o prazer de humilhar você, de ser superior”, analisa como agia o marido. “Não que eu me cuide mais, mas o semblante muda. Não é o exterior, é o interno. Hoje estou, naturalmente, mais feliz. Eu precisava falar”.

 

Feminicídio

 

Todas as mulheres personagens dessa reportagem escolheram não identificar seus nomes. Portanto, foram escolhidos nomes fictícios que, não à toa, fazem parte de histórias dolorosas que ficaram marcadas na lembrança da Paraíba. Essas mulheres que hoje contaram seus relatos de realidade, conseguiram romper o ciclo de violência. No entanto, Vivianny Crisley, Bríggida Rosely de Azevedo, Aryane Thais, Izabella Pajuçara e Michelle Domingos, mulheres de fato batizadas com esses nomes, não tiveram tempo suficiente de lutar umas pelas outras. Foram vítimas do feminicídio, que só virou lei em 2015.

 

Vivianny Crisley

 

A vendedora Vivianny Crisley passou 15 dias desaparecida após ser vista saindo de um bar na Zona Sul de João Pessoa, entre outubro e novembro de 2016. O corpo dela foi encontrado carbonizado, em uma mata, em Bayeux, na Grande João Pessoa.Três homens foram presos suspeitos de participação no crime. Primeiro Allex Aurélio Tomás dos Santos, em João Pessoa, e, em seguida, Jobson Barbosa da Silva Júnior, conhecido como Juninho, e Fágner das Chagas Silva, apelidado de Bebé, no Rio de Janeiro. Allex Aurélio já foi condenado a 26 anos de prisão em regime fechado. Os outros dois, que também iriam a júri popular no dia 28 de fevereiro, tiveram o julgamento adiado porque mudaram os defensores públicos por advogados particulares.

Para a promotoria, Vivianny foi golpeada no pescoço e na cabeça com uma chave de fenda pequena e com outra ferramenta maior, uma chave-estrela. Tudo isso dentro do carro, porque ela queria ir embora e gritou. Em seguida, os criminosos a levaram para outro lugar, jogaram a gasolina de uma moto por cima do corpo e, junto com um pneu de bicicleta, atearam fogo.

A família, no entanto, relembra o caso diariamente. Vivianny deixou uma filha que hoje tem dois anos de idade. A mãe, Veranilde Viana, prolonga a dor a cada dia que passa. Achou que o dia do julgamento fosse o momento dessa história. Como outros familiares, os parentes de Vivianny querem apenas justiça. “Vamos sofrer mais alguns meses, mas a gente crê na justiça”, revela Wiliane Freitas, prima de Vivianny.

FONTE:https://g1.globo.com

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