Com 10% da PB já infectada por Covid-19, profissionais de saúde relatam drama da linha de frente
O que acontece..
Publicado em 06/07/2021
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É uma noite de terça-feira, por volta das 21h30. A fisioterapeuta respiratória Emanuelle Costa, de 29 anos, está toda paramentada – roupas de proteção, óculos, máscaras. Ela está perto de completar 15 horas dentro do Hospital Clementino Fraga, em João Pessoa, referência no tratamento à Covid-19 na capital paraibana. Dali, ela só vai sair às 7h do dia seguinte, ao término de 24h seguidas de plantão. Ela conversa com o G1 por telefone, depois de várias semanas de tentativas frustradas de se conseguir a entrevista. O papo, aliás, começa com 30 minutos de atraso, porque na hora previamente marcada uma intercorrência de emergência - mais uma - impedira que ela atendesse ao telefonema.
Essa é a realidade dela há mais de 15 meses. Excesso de trabalho, exaustão, pouco tempo livre. Necessidade de lidar com um alto número de internações e mortes. Uma realidade, aliás, que não parece estar perto do fim. Nesse fim de semana, por exemplo, a Paraíba ultrapassou a marca dos 400 mil casos positivos de Covid-19 no estado. O que significa dizer que 10% da população local já foi infectada, resultando em mais de 8,7 mil mortes.
Na conversa, aliás, Emanuelle Costa não relaxa. Entre uma frase e outra, para e faz alguma recomendação clínica para alguém próximo. Depois, retoma de onde tinha parado. Ainda assim, garante, é um raro momento de tranquilidade na unidade hospitalar. Na maior parte do tempo, a situação é completamente oposta. E é por isso que ela declina da sugestão de remarcar a entrevista para outro dia e manda que se prossiga com as perguntas. “Melhor fazer logo. Esses dias estão muito corridos”, destaca, alertando que seria impossível dizer quando poderia surgir uma nova oportunidade como aquela.Emanuelle é uma das muitas profissionais de saúde paraibanas que estão na linha de frente da pandemia desde o início. Relata momentos terríveis. Situações limítrofes que precisou viver em todos esses meses de pandemia.Ela atende tanto na enfermaria como na UTI destinada a pacientes com Covid-19. Mas é nesse segundo local que os casos são mais assustadores. Que os relatos são infinitamente mais intensos. “Quando se trata de vida ou morte, é algo que mexe muito com as pessoas”, pondera.
Ainda assim, para ela, não restam dúvidas. O período mais absurdamente grave aconteceu em março de 2021, quando o sistema de saúde paraibano, e dos próprios profissionais, chegaram ao “limite da capacidade”. Foi quando várias pessoas morreram antes de serem atendidas adequadamente.
De acordo com Emanuelle, nesse período eram 61 os pacientes com Covid-19 à espera de uma vaga em UTI, que estavam superlotadas.
“Muitos não resistiram. Foram vários os casos de pacientes que esperaram muito e, quando finalmente chegaram à UTI, já estavam em estágios avançados”, declara a fisioterapeuta Emanuelle Costa.
Ela explica que, quando uma pessoa é intubada tardiamente, o quadro se agrava muito. A musculatura do pulmão entra em estado de fadiga e fraqueza e isso dificulta a recuperação.A fisioterapeuta, inclusive, relata o caso de duas amigas dela que morreram na mesma época, o que tornava o trabalho ainda mais penoso e difícil. Porque as notícias sobre mortes de pessoas queridas começaram a chegar enquanto ela precisava continuar trabalhando. As duas ficaram internadas por dois dias num hospital que não era de referência, sem atendimento adequado. Quando as vagas finalmente surgiram, já era tarde demais. “Uma morreu dentro da unidade do Samu. A outra morreu pouco depois de chegar à UTI”.
Emanuelle Costa explica que o momento mais intenso, mais definitivo, em que todo mundo repensa valores, é o da intubação. Aquele em que a pessoa tem a consciência de que vai ser sedada e que, talvez, nunca mais acorde. “Eu já vi muita gente repensando a vida neste momento, torcendo para que tenha uma chance de mudar prioridades”.
É justo neste momento de intubação, prossegue Emanuelle, que o medo da morte aparece de forma mais intensa e cristalina. Pode ser, afinal, o último momento de consciência da vida de um paciente. E ele sabe disso.
Ela lembra, inclusive, de um caso específico. Um homem jovem, 37 anos, profissional de educação física. Na prévia de ser intubado, pediu para segurar a mão dela. Chorou. Quis conversar. Desabafou. Admitiu que trabalhava muito. Não deixava muito tempo para a família.
“Ele me disse que queria viver, queria ter melhor qualidade de vida, aproveitar mais a vida. Uma pessoa bem jovem, mas foi a óbito. Ficou mais de dez dias intubado, até que teve uma parada cardíaca”, lamenta Emanuelle.
São situações que sugam a energia dos profissionais de saúde. Que esgotam psicologicamente e emocionalmente as equipes hospitalares. “São dias muito exaustivos. Que a gente às vezes pensa em desistir. Não é fácil. Porque não são todos os pacientes que saem vivos. Isso abala”.Por sorte, contudo, ela explica que há um outro lado que ameniza toda a dor. Pessoas que, contra todos os prognósticos, sobrevivem. Recuperam-se. Enchem as equipes da linha de frente de esperança.
Casos como o de um homem idoso, que passou mais de 30 dias internados com Covid-19, sendo 13 desses intubado num leito de UTI, com alto risco de óbito. Depois, acordou, se recuperou, recebeu alta. A gente não acreditava que ele estava saindo vivo”, comenta, explicando que tempos depois, já recuperado, ele entrou em contato com os profissionais do hospital para agradecer. “Isso é um alento”, completa.
A médica Fernanda Tavares, 40 anos, trabalhou por um ano numa ala Covid de um hospital particular de João Pessoa. Em abril, optou por deixar a linha de frente. Estava esgotada. Fisicamente. Mentalmente também. No período que trabalhou, contudo, viu de tudo. Precisou tomar decisões graves. Como, por exemplo, definir entre dois pacientes que estavam na enfermaria qual ocuparia o único leito vago de UTI naquele momento.
“Eu precisei optar”, resume Fernanda Tavares em poucas palavras.
Era um homem de 45 anos e uma mulher idosa de 89 anos. Ambos precisavam ser intubados com urgência. Apenas um leito estava vago. Não houve milagres. O homem foi transferido, intubado e sobreviveu. A mulher não.
“Eu não tinha o que fazer. Era escolher. É uma decisão médica por estatística”, explicou, dizendo em seguida que a mulher era hipertensa, diabética, sequelada de um AVC.
O cotidiano era desumano. Os médicos, em geral, precisavam acompanhar um número de pacientes muito maior do que o ideal por vez. Alguns dias, chegavam a 25 pacientes sob responsabilidade de um mesmo médico, simplesmente porque os casos de internação não paravam de aumentar e não havia profissionais suficientes – o ideal são oito pacientes por médico.
“Às vezes eu nem conseguia almoçar. Era sobre-humano”, prossegue.
Tudo isso ajudou na sua decisão de se afastar. Era uma realidade muito estressante. Que fazia os profissionais terem medo de cometer algum erro.
“Com todo esse estresse, você pode falhar mentalmente, por causa do cansaço. Deixar de pedir um exame ou de aplicar um remédio”, admite. Isso a atemorizava. Ia minando o emocional.
Para além disso, tinha a própria gravidade da doença. Fernanda destaca que, às vezes, deixava um paciente bem, com o quadro clínico estável. Mas, no dia seguinte, ao reassumir o seu posto, esse paciente já estava morto. “Piorava de repente, de madrugada. Morria em pouco tempo”, explica.
Ao longo deste primeiro ano de pandemia, Fernanda Tavares conta que viu de tudo. Mas um caso para ela demonstra o grau de desespero que tomou conta de algumas famílias. Ela explica que, num dia de janeiro deste ano, no auge da crise de oxigênio que tomou conta do Amazonas, chegou ao hospital onde ela trabalhava um homem de Manaus. Ele estava com Covid-19. Aliás, já sabia que estava quando comprou uma passagem, se meteu de máscaras num avião sozinho, e voou para João Pessoa a fim de se internar. Uma cidade estranha, onde ele não conhecia ninguém, onde não tinha uma rede de apoio.Quando Fernanda soube que o homem viajara doente, repreendeu-o. E se surpreendeu com o que escutou. Era um homem de 54 anos. Sua esposa estava internada em estado gravíssimo, penando com a falta de oxigênio na região. “Ele viajou doente e se internou aqui. O filho enterrou a mãe em Manaus e viajou para João Pessoa para ver como o pai estava”, descreveu.
O homem queria rever o filho ao menos uma última vez. Não queria ser intubado antes do filho chegar de viagem, mas isso não foi possível. Desesperado com a incapacidade de se despedir do filho, foi sedado. Mas, nesse caso, ao menos, o pai melhorou. Acordou.
Fonte:https://g1.globo.com