Fisioterapeuta relata angústia de optar por entubação do pai com Covid-19 na PB; 'tive que decidir'
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Publicado em 18/03/2021
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Antes de sair de casa para encarar plantões na linha de frente do combate à pandemia, a fisioterapeuta Andréa Braz, de 31 anos, reza pedindo proteção e coloca um terço católico na bolsa. Ela acredita que o ritual aliado ao uso de equipamentos de proteção individual (EPIs) ajudaram para que ela não se contaminasse com a Covid-19. Mas, não foram capazes de impedir que passasse, no início de 2021, por um dos momentos mais difíceis da carreira profissional e da vida pessoal: a entubação do pai, um idoso de 67 anos, infectado pelo novo coronavírus.
“Tive que fazer os dois papéis. Tanto como fisioterapeuta, quanto filha”, desabafou com a voz embargada, ao lembrar pelo que passou.
Além da incerteza de estar com um familiar com uma infecção que pode ser fatal, Andréa ainda experimentou a angústia de ser apontada como a pessoa que transmitiu a doença para o pai. Ela, que sempre teve muito cuidado e sabe o verdadeiro valor da prevenção.
“As coisas [com que teve contato] no hospital deixo na garagem, já por conta dele”, contou.
Mas Andréa sabe que a acusação é infundada. Reginaldo Francisco Braz e a esposa, Socorro Braz, se contaminaram durante uma viagem para o estado vizinho, Rio Grande do Norte. Ambos são hipertensos e diabéticos, condições preexistentes que podem agravar a doença. Ela teve sintomas leves. Ele, os piores.
O que a profissional de saúde mais fez durante quase um ano de pandemia foi exercitar a empatia, involuntariamente, se pondo no lugar de pacientes, parentes e amigos de pacientes. Até que chegou o momento dela.
“Eu tanto imaginei, quanto fiquei no lugar [das famílias dos pacientes]”, lamentou.
Foram pelo menos seis anos de capacitação, para que hoje ela possa encarar 12 horas de plantões exaustivos, que se repetem, ao menos, 10 vezes no mês. Desde maio do ano passado, ela trabalha no Hospital de Clínicas, referência para tratamento intensivo de pacientes com Covid-19, em Campina Grande, no Agreste do estado.
Diante de tantas altas celebradas e mortes sofridas, ela não imaginava que viveria com o pai o momento que, para ela, foi o mais crítico da pandemia. Para a profissional, foi colocada a decisão de escolher o procedimento que poderia salvá-lo.
“É a hora que você deixa o racional e vira o emocional. Deixa de ser fisioterapeuta e vira a filha”, recordou, emocionada.
Depois de tentar várias opções de tratamento, às quais o organismo de Reginaldo não respondeu, Andréa optou pelo o que ela chama de “entubação preventiva”, que aconteceu em tempo hábil para poupar a vida do pai.
“Se a gente protelar, corre o risco do paciente não voltar”, advertiu.Mesmo na escala do dia em que a entubação aconteceu, ela não participou da parte prática do procedimento, por causa da ética profissional. Mas acompanhou todo o processo. Ficou cara a cara com uma das piores faces da doença, a da ameaça de perder quem ama.
“No dia, eu fiquei naquela ‘faz ou não faz?’. Eu ia me sentir culpada de todo jeito. Se ele fosse entubado e não resistisse, e se não fosse entubado e morresse. Foi um momento extremamente difícil pra mim, mas eu tive que decidir”, lembrou. Foram seis dias entubado e 15 de internação, ao todo. Passada a pior fase, quando os pacientes deixam o hospital com vida, Andréa e as companheiras de trabalho vivem instantes de alívio em maio ao caos.
“A gente sente que o dever foi cumprido, que o trabalho foi bem feito. O paciente tá indo encontrar um familiar. Ele está voltando para o seio da família. Não tem como não se emocionar”, declarou.
Por isso, a equipe do hospital em que a fisioterapeuta trabalha faz com que as altas médicas sejam humanizadas. Alguns pacientes pedem louvores para agradecer pela vida. Cada um pode escolher a música que preferir para comemorar.
O pai de Andréa deixou a unidade de saúde em uma cadeira de rodas, porque ainda estava debilitado. Mas, como o coração de um autêntico nordestino pulsa em ritmo de forró, ele saiu do local ao som da música “Coração”, na voz do cantor Dorgival Dantas, de quem é fã de carteirinha.
“Meu pai tinha tudo pra dar errado. Foi um milagre de Deus ele ter sobrevivido. Enquanto fisioterapeuta e filha, fiquei muito feliz por ele ter saído da situação em que estava”, destacou, com a fala vibrando de alegria.
Em casa, o tratamento continua. Exercícios de reabilitação respiratória e motora fazem as sequelas desaparecerem com o tempo. Segundo Andréa, esse é processo adequado para o pós-Covid.
“A sequela da Covid, principalmente para o paciente que foi entubado, é muito grande. Três meses depois, o paciente ainda se sente cansado. O pulmão não se regenera do dia para a noite”, reforçou.Dados do coronavírus na Paraíba
Quando chega ao hospital, a primeira parada é feita na sala de paramentação. Nela, Andréa veste a farda do hospital e começa um longo, mas necessário protocolo.
Primeiro ela coloca uma touca envolvendo os cabelos presos. Depois, duas máscaras: uma N95 e outra cirúrgica por cima. Ainda no rosto, óculos e um protetor facial. No corpo, também tem espaço para um capote. Nas mãos, três pares de luva.
“A gente coloca duas luvas e prende com um esparadrapo. Depois, coloca a terceira. Cada vez que a gente toca em um paciente, tem descartar a terceira luva. Bastou encostar na maca com paciente, a gente tira luva, higieniza a camada de baixo com álcool em gel e coloca um novo par. A gente se policia direto [para não se contaminar, nem espalhar o vírus]”.
Na UTI, uma equipe composta por médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e fisioterapeutas são os responsáveis pela manutenção de vidas. Nutricionistas, psicólogos e assistentes sociais dão reforço ao grupo.Quando o paciente chega até a emergência, é o fisioterapeuta que avalia o desconforto respiratório dele, que pode variar entre leve, moderado e grave. O profissional também identifica o quanto o pulmão está comprometido.
A conversa para preparar o paciente é liderada pelo setor de psicologia e serviço social. Depois da entubação feita pela equipe multidisciplinar, o fisioterapeuta regula o oxigênio que o paciente recebe.
“O psicológico da gente é completamente abalado. Os plantões estão sendo extremamente cansativos”. É com essas frases que Andréa define o trabalho desde ao início da alta de casos e registro de uma nova variante, identificada originalmente no Amazonas e que tem uma maior capacidade de infecção, circulando pelo estado.
A profissional de saúde lamenta por todas as mortes, as quais já perdeu as contas de ter presenciado. Preocupada com a pandemia, que não retrocede, ela não hesita em fazer um alerta.
“Não é só é gente idosa que tem Covid. Um paciente de 18 anos precisou ser entubado. Não existe isso de novo ou velho. Se é atleta ou não é atleta”.
No trabalho, ela e os colegas fazem de tudo pela recuperação dos pacientes. Mas nem tudo, algumas vezes, é o suficiente.
“Chegar pra uma pessoa e dizer ‘você vai ser entubada porque é o melhor pra você’ é muito difícil. Tá na mão de Deus. Pode dar certo e pode não dar. É o momento mais difícil que a gente passa”, concluiu.
Desde o início da pandemia, em 2020, o governo da Paraíba realizou processos seletivos para selecionar os profissionais de saúde que atuam no combate à pandemia em todo o estado.
Pelo menos centenas de médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, psicológicos e nutricionistas foram convocados. Andréa e colegas de trabalho são alguns deles.
A SES, por meio de sua assessoria de comunicação, não soube precisar quantos profissionais foram selecionados. O colaborador que passaria os dados foi infectado pelo novo coronavírus e está internado.
FONTE:https://g1.globo.com